O Pe. Manuel Antunes S.J.(1918-1985) é um dos grandes intelectuais contemporâneos da língua portuguesa. Seu pensamento foi claro, transparente e harmonioso.

Sua narrativa emergia, acima de tudo, de uma preocupação de cunho moral. A defesa do bem comum foi sempre colocada como escopo ético de toda interpretação do sentido dos atos.

Existe, assim, um substrato universal no pensamento de Manuel Antunes, que não diz respeito apenas a Portugal, mas às ações humanas como um todo.

E, por isso, ele discutiu com precisão, e inspiração profética (porque a narrativa profética é narrativa moral), outras conjunturas e dinâmicas que não apenas as portuguesas.

É claro que toda sua preocupação era com Portugal, com o futuro de Portugal, com as questões de Portugal. Para Manuel Antunes o problema, de Portugal, era parte de um problema humano. E, simultaneamente, um problema em si.

Antunes era profundamente sensível aos elementos da civilização portuguesa e, principalmente, à realidade de Portugal no seu tempo.

Foi-lhe particularmente caro o tema da identidade, e das implicações morais dessa identidade.

Definiu o povo português como um “povo místico mas pouco metafísico; povo lírico mas pouco gregário; povo ativo mas pouco organizado; povo empírico mas pouco pragmático; povo de surpresas mas que suporta mal as continuidades, principalmente quando duras; povo tradicional mas extraordinariamente poroso às influências alheias; povo convivente mas facilmente segregável por artes de quem o conduz ou se propõe conduzi-lo”.

Há uma identidade lusitana? Sem dúvida que há. Mas identidade que é enraizada num “individualismo mesquinho”, num “oportunismo de trazer por casa”, num “fatalismo resignatário”, num “infantilismo – apesar dos anos!”, num “utopismo de fuga para todos os impossíveis”, num “passivismo com ares de apatia” e, por fim, num “improvisadorismo que tantos percalços nos têm causado”.

É possível que todos os povos tenham semelhantes problemas. Sendo os seres humanos tão hesitantes entre as coisas do mundo e as coisas espirituais, entre si mesmos e o coletivo, entre o mal e o bem.

Mas, no que nos interessa, como brasileiros, Antunes viu, em Portugal, tudo nisso num algo mais, num algo particular. Entendeu essa identidade dotada de uma disfunção, do ponto de vista do necessário reconhecimento da autoridade moral na longa história de Portugal.

Digo como brasileiros, pois, sendo Antunes tão português, e tão paradigmático com relação ao seu país, podemos dizer que também intuía questões que eram do Brasil. Pois o Brasil emergiu de Portugal.

O Brasil traz, na sua origem, os temas portugueses como fundamento e paradigma de quase tudo que se tornará realidade em sua história. É claro que temos em nós esse sangue indígena e africano, e de muitos outros povos que fazem parte de nosso cotidiano como nação.

Mas de Portugal nos vieram os horizontes institucionais, as formas para pensar nossa autonomia, dele veio nossa língua. E, de fato, um dos aspectos mais centrais da história de Portugal, aponta Antunes, é ter sido “um país tão pequeno” capaz de criar “um mundo tão vasto e tão unido como o Brasil“.

Os historiadores brasileiros, de forma evidente, foram sempre e profundamente inquietados por nossa origem, pelas nossas raízes, pelos desatinos e desvarios de nossa história, pelos nossos problemas de identidade.

E sempre apontaram em Portugal alguns dos principais fundamentos de nossas particularidades.

Assim, é usual, em nossa historiografia, ir a Portugal para entender os temas, formulados por Antunes, no que diz respeito ao seu país, mas perfeitamente adequados ao nosso. Isto é: nossos paradoxos, nossa mística rudimentar, nosso lirismo, nossa desorganização, nossa ausência de pragmatismo, nossas surpresas, nosso caráter influenciável, nossa segregação no mundo.

E, de fato, somos também, como atribui Antunes ao português, portadores de uma moral subjetiva ou relativista – e de um egoísmo e um oportunismo sem limites. Quase apáticos, tantas vezes, utópicos sem substância, e profundamente improvisadores.

Talvez essas questões sejam questões gerais das sociedades católicas. E que se tornam evidentes quando seguimos pelo caminho da secularização dos estados, e do caos moral que lhe é característico.

Mas em português nos é fácil reconhecer, na transparência das definições de Manuel Antunes, os mesmos elementos que nos atormentam a história. Porque realmente nos são estranhamente comuns.

Mas é claro que, embora em parte correlatas, as grandezas do problema no Brasil sempre foram entendidas como maiores que as de Portugal.

Principalmente porque não tínhamos, como em Portugal, uma tradição de autoridade instalada, e, a que tínhamos, a jesuíta, foi destruída pelo Marquês de Pombal.

E, por isso, escreve Manuel Antunes sobre o “excesso – tão brasileiro – da emoção sobre a razão!”. Nos reconhecemos no paradigma português, no geral. Mas o nosso caso é, certamente, muito mais grave.

Essa sensibilidade de Manuel Antunes ao problema do Brasil aponta, para nós, uma misteriosa sintonia: buscamos, tanto Brasil, quanto Portugal, análogas transformações de cunho moral?

Antunes defendeu, diante do complexo quadro de seu país após a Revolução de 1974, o conceito de revolução moral: “Procedeu-se a uma revolução política. Procedeu-se a uma revolução económica e social. Procedeu-se, até certo ponto, a uma revolução cultural. E a revolução moral? Sem ela as outras revoluções correm o risco de não passarem de perversões”.

Realizou-se em Portugal a “revolução moral” pretendida por Manuel Antunes? O que é certo, para nós, é que essa transformação ainda não se realizou no Brasil.

Vivemos as agudas e dolorosas dificuldades de concentrar nossos esforços, de forma dominante, para a realização do bem comum. As dificuldades que temos, nesse campo, podem bem ser consideradas a partir das perspectivas de Manuel Antunes:

“Consiste o bem comum essencialmente em dois elementos: na existência de estruturas e instituições que em determinada fase histórica sirvam ao uso, à dignidade e à dignificação da comunidade”. E segundo, “na vontade de solidariedade que une todos os membros dessa comunidade, de forma a que todos participem, na devida proporção, desse bem objectivo fundamental”.

E, como assegura Antunes: “Se um desses elementos básicos falha, falta a razão de toda a dinamização histórica positiva, de todo o sentido de viver num autêntico horizonte de esperança”. No caso brasileiro, onde “emoção” predomina sobre “razão” faltam-nos, infelizmente, ambos elementos.

Assim, portanto, a presença de Manuel Antunes é evidente e atual. “Impõe-se”, afirmava depois dos eventos de 1974, em Portugal, “uma revolução moral. Uma revolução moral que está, quase toda ela, por fazer.”

Não temos condições de saber onde está Portugal, com relação a este assunto, neste momento. Mas, no Brasil, tal transformação moral continua, como sempre, sendo imprescindível. E fazemos nossas as palavras do Pe. Manuel Antunes.

Precisamos de

“Uma revolução moral que, assumindo os domínios político e económico, os transcenda a um nível superior de comunidade e comunhão; uma revolução moral que, pelo facto de o ser e para o ser, promova o sentido da criatividade do pensamento e da vida; uma revolução moral que não ignore as questões últimas que a existência a si própria se põe; uma revolução moral que saiba unir cultura popular e alta cultura; uma revolução moral que inspire a mobilização das energias nacionais (…) uma revolução moral, sobretudo, que ensine a conjugar justiça e solidariedade, liberdade e honestidade”.

“Porquê uma tal revolução?”, pergunta-se Antunes,  “Porque, muito mais que a instituição de novas estruturas, importa a qualidade dos homens que habitam essas mesmas estruturas”.

Pensador de Portugal, pensador do humano. O Pe Manuel Antunes é também um pensador do Brasil. Porque a solução de uma crise no campo da moralidade sempre será o fortalecimento da consciência moral: sua reinvenção, que traz o contorno de uma mutação e, eventualmente, de uma revolução.

(Edgard Leite é diretor do Instituo Realitas)

in https://institutorealitas.com.br/artigos/manuel-antunes-e-o-imperativo-da-revolucao-moral-por-edgard-leite/